sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Ensaio sobre Saramago




José e Pilar de Miguel Gonçalves Mendes

O documentário sobre a relação de José Saramago com sua esposa, a jornalista espanhola Pilar Del Rio, é bastante emocionante e singelo. As câmeras desvelam as minúcias de um relacionamento intenso e afetivo, que revela inúmeros momentos alegres e cômicos da intimidade do casal, mas também os problemas de saúde e a presença sempre forte da morte, especialmente nas falas e nas reflexões do próprio Saramago. É impossível não se emocionar com o carinho que o escritor português – através de palavras e gestos – trata Pilar; sua preocupação com seu ofício de escritor, o temor de não conseguir concretizar seu último livro (A Viagem do Elefante. O leitor atento, porém, sabe que este não foi seu último livro, pois ele ainda escreveu Caim, ambos publicados pela Companhia das Letras); mas também sua paixão pela vida. Enfim, o filme atinge em cheio seu objetivo central, qual seja, registrar a intensidade afetiva do encontro de Saramago e Pilar e com isso afetar energeticamente o espectador. Existe, porém, um ponto secundário no discurso do filme que abre caminho para outro tipo de reflexão. As câmeras do documentário registram essencialmente dois tipos de situação, ainda que estas acabem se misturando: os momentos íntimos e os eventos públicos. Os primeiros, em teoria, seriam os mais freqüentes, já que registram o espaço do casal, as conversas e os gestos mais reservados. Apesar de o filme estar focado na intimidade do casal, o espectador é bombardeado por uma enorme sequência de eventos públicos, nos quais tanto Saramago quanto Pilar participam. São palestras, entrevistas, lançamentos, noites de autógrafos, homenagens, manifestações políticas, etc. Ainda que a presença mais forte e fulgurante nesses eventos públicos seja do escritor, Pilar também ocupa um espaço relevante, por exemplo quando se manifesta contra a guerra do Iraque. Há também um espaço de transição quando Pilar, e quase sempre é ela que assume esse papel, fala sobre a rotina de trabalho do casal, o tratamento da correspondência, etc. O que fica evidente é uma espécie de exaustão da figura pública do escritor. Ele precisa realizar um trabalho constante de visibilidade, no qual sua presença garanta uma espécie de suplemento de intensidade ao seu próprio ofício. É como se na contemporaneidade não bastasse a escrita, mas esta precise ser constantemente alimentada por um elemento excessivo, algo externo ao próprio texto, que percorre um circuito midiático intenso e constante. Saramago precisa autografar, falar, se fazer presente e visível. A sua vida é progressivamente convertida numa figura ficcional, ele se torna um personagem de si próprio. Esse processo é desgastante e exaustivo. A necessidade de viajar constantemente, por exemplo, deixam o escritor profundamente abalado e debilitado. Mas nada evidencia com mais clareza esse desgaste do que as exigências da fala. Saramago reclama inúmeras vezes de que talvez não tenha coisas novas a dizer, mas é instado a continuar sempre repetindo o que já disse. Essa repetição cria um espaço vazio no seu discurso, fato que é muito lucidamente diagnosticado pelo próprio escritor, no qual nada realmente é dito e a fala se torna um gesto puramente performático. Ele fala simplesmente porque precisa alimentar aquelas engrenagens midiáticas. Isso revela um decisivo deslocamento na representação clássica do intelectual engajado. Como se sabe, ao longo do século XX, sempre houve um espaço para a figura do intelectual que fala no espaço público, se posicionando diante dos dilemas políticos do seu tempo. Essa figura, entretanto, perdeu grande parte do seu sentido na contemporaneidade. Esse processo de esvaziamento do intelectual engajado afeta Saramago diretamente. São bastante conhecidas suas posições políticas (comunista, ateu, a favor dos direitos sociais e contra a opressão, etc.), porém o documentário evidencia como essa sua opção é progressivamente esvaziada pela insistente repetição de sua imagem. Chega um ponto no qual ele não consegue mais ser o intelectual que aborda os temas relevantes pelo simples motivo de que precisa falar o tempo inteiro a respeito de qualquer coisa. E o que fica em segundo plano é sua própria obra. O autor, convertido em ator, torna-se o grande motivo de preocupação do público. As pessoas ficam ávidas por uma dedicatória, ou em casos extremos de constrangimento, desejam que o pobre escritor desenhe um hipopótamo em seus livros!!. Curiosamente, o próprio documentário reforça essa transformação. O que vemos na tela do cinema, acima de tudo, é a construção de um personagem poderoso, o casal Saramago/Pilar. É por isso que, apesar dos momentos íntimos serem até menos freqüentes que os eventos públicos, o que acontece é uma intimização da figura do escritor. Ele deixa de ser relevante pelo seu ofício (a escritura) e se torna uma figura midiática. Não é a toa que os inúmeros compromissos públicos acabam dificultando a própria temporalidade da escrita, atrasando o projeto do livro que Saramago escrevia. Essa vampirização da vida, convertida num produto imaterial, cobra um preço alto, quando o escritor entra em colapso. E quando isso ocorre, um dos grandes temores de Saramago, como já mencionado, é não conseguir finalizar o seu próprio livro. A sua constante exposição provoca uma espécie de esvaziamento de sua própria potência, cada vez mais capturada pelos dispositivos midiáticos. A partir disso, é possível refletir um pouco sobre o papel do próprio documentário, que não faz senão repetir essa mesma lógica. A câmera, uma intrusa sempre presente, não se afasta nem nos momentos mais tensos, quando Saramago está enfermo e internado num hospital. Não há nenhum imperativo maior do que satisfazer a curiosidade do público diante daquele personagem tão intrigante. Felizmente a intensidade afetiva do escritor consegue abrir um espaço de dobra, ainda que provisório, nesse processo de captura, e acho que é isso, sobretudo, que me emocionou ao longo do filmes. É quando a obra se finaliza, e o escritor pode transformar sua potência em ato: a escritura. Enfim, o documentário acabou criando uma forte sensação, quase de urgência, de que não há homenagem maior do que esquecer um pouco o personagem Saramago e retornar ao escritor Saramago, e recomeçar a ler seus livros.

Fonte: http://ensaiosababelados.blogspot.com/2010/11/jose-e-pilar-de-miguel-goncalves-mendes.html

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