segunda-feira, 16 de maio de 2011

Cartas a Alice - José Pacheco



Querida Alice,

Aqui estou, entregando-lhe este montinho de cartas. Quando a decifração dos códigos da linguagem dos homens lhe permitir, você há de lê-las. São tantas quantos os dias que mediaram o dia de você completar seis anos e o dia de ir à escola. Esta é a última das cartas, mas não o fim da história. Este é o dia da sua primeira ida à escola, o início de uma outra história. E ambas terão os desfechos que lhe quiser dar. A vida é uma históra sempre inacabada a que podemos conferir diferentes desenlaces. Basta que não nos confinemos aos estreitos limites do entendimento das coisas e dos seres deste nosso tempo da proto-história dos homens. Quando, depois de extintos os ecos do tempo da história, os homens acederem à era do espírito, hão de entender a fragilidade dos paradigmas que sustentavam as suas ciências. Hão de reconhecer como aparentes as suas imutáveis realidades. Hão de reconhecer a falsa moral de suas histórias, se comparada com a doce amoralidade dos pássaros.Quero que saiba que, quando os homens acreditavam que o seu mundo era plano e limitava-se aos mediterrânicos limites, já os pássaros sabiam que o planeta tinha forma arredondada, por o terem sobrevoado de ponta a ponta. No tempo em que os homens acreditavam que eram o centro do mundo e viam abismos e monstros na linha do horizonte, os pássaros redefiniam zênites e provavam que o espaço é ilimitado como a música e os sonhos. Onde, antigamente, os homens idealizaram um céu de vida eterna para os seus eleitos, havia pássaros. No lugar onde imaginaram situar-se o trono dos seus deuses, não havia uma "pomba estúpida" à medida dos seus medos, mas o espírito dos pássaros. Quando os desvendadores dos segredos dos mares atingiram novos mundos, encontraram pássaros. Quando os homens voaram até a Lua e dela contemplaram o planeta azul, compreenderam que o azul que separava do imenso e negro espaço não tinha segredos para os pássaros que, há séculos, o habitavam. E quando os astrônomos espreitaram através de potentes telescópios, penetrando distantes galáxias e confirmando a antiga predição de que o que está por baixo é igual ao que está no alto, viram pássaros invisíveis pousados no asteróide B 612. Para você, querida Alice, é natural o modo doce como a escola a acolhe. Neste primeiro dia do resto de sua vida parece que sempre foi assim. Mas, para que você pudesse gostar de ir à escola, muitos foram os pássaros que sofreram a dor de um tempo em que as gaivotas se condoíam de ver jovens pássaros amontoados em celas de concreto, vigiados nos mínimos gestos. Por mais inverossímil que possa parecer, era mesmo assim, querida Alice. A curiosidade infantil acabava desfeita em submissões. Mas, como disse, as histórias acabam como nós quisermos que acabem...


( Texto extraido do livro: Para Alice, com Amor / José Pacheco. - 2. ed. - São Paulo: Ed. Cortez, 2006. )


Um comentário:

  1. Acho que não existe, um ensinamento melhor do que o “pai de um pai”, ou seja, o avô para ensinar ao seu neto os valores da vida. Esta obra é muito marcante, pois ensina algo além dos conselhos citados, como por exemplo, o valor de um lindo sentimento.

    ResponderExcluir